ENTRELAÇAMENTO SILVESTRE

ABUNDÂNCIA

Baseado no latim abundans, “qualidade daquilo que transborda por estar cheio”. Pré-existência ou criação de excedentes energéticos e materiais, acima daquilo que é estritamente necessário para a subsistência básica de algo. Principal estratégia empregue pela vida, no sentido de permanecer por tempo indefinido, reinvestindo excedentes em ciclos de repetição e variação mais longos, com maiores graus de redundância e complexidade.

INTELIGÊNCIA

Das partículas latinas inter “entre” e legere “ler”; a capacidade de se relacionar significativamente com a potência simbólica daquilo que está em redor, conotando o entendimento conjunto de várias coisas interligadas. A raiz proto-indo-europeia leg “colher, coletar, juntar”, tem o sentido derivativo de “escolher sons e palavras para tentar nomear as coisas”; estar em relação com elas; falar a sua língua, compreendendo-as por meio de comunicação.

COMPLEXIDADE

Do proto-indo-europeu pleh “dobrar, torcer ou entrançar”. Qualidade dos objetos que emergem de processos de acumulação e multiplicação de funções e relações entre elementos do mesmo sistema, em que o objeto emergente depende da permanência da forma, das funções, do material e da energia dos objetos mais simples que o compõem e dos quais emerge.




Chegámos ao lugar mais florestado das redondezas da Adega. Este espaço de acesso comum é, de facto, privado, mas nele passeiam diariamente cabras e ovelhas acompanhados pelos vizinhos.

“Eu nem as vou soltar agora, vou fechar ali uma porta... Porque elas saltam-me a vedação e foram ali p’ro vizinho,” - M

No outono, a comida é abundante para estes animais, caindo na forma de bolotas, ou landras, dos sobreiros (Quercus rotundifolia ou Quercus suber)

“A cabra adora isso!” - M

...e carvalhos (Quercus robur ou Quercus petraea) que aqui se encontram.

“Não, a do carvalho é que é boa, que elas comem. Tem que deixar cair um bocado... Quando ela cair ao chão, ta boa. Elas caiam, não caiam, as cabras pegam-lhe logo!” -M

Já nas outras épocas do ano a comida escasseia, estando restrita às ervas altas, que se encurtam e padecem quando a fome é demasiada. As mais saborosas já não crescem a meio do verão, e a pastagem excessiva faz-se sentir pela presença exclusiva das ervas venenosas, como as dedaleiras (Digitalis purpurea), que nem as cabras comem.

“Os animais sabem o que é que comem. Só se tiver porcaria; só se as pessoas botarem herbicidas ou o carago, isso aí é que esquece...” - M

De facto, muitas das preferências destes animais são também as nossas, mesmo que as tenhamos esquecido.

“As bolotas ninguém ligava àquilo, era para o... era para os animais, para as ovelhas. Elas é que comem.” - L

“Eu como o que a cabra pega. O que a cabra lhe pegar... Quando ela começa ‘pff’...” -M

A bolota foi outrora a base alimentar de muitos povos que viviam com as florestas no mais avançado estádio de sucessão ecológica da Península Ibérica: os carvalhais.

“A mais amarga fica assim com a boca um bocado... Um bocado esquisita, parece áspera. Mas quando elas caem ao chão, tiro-lhes a casca, e vejo que estão limpas, lavo-as, e pronto... Aquilo é castanha autêntica!” - M

O loureiro (Laurus nobilis) acompanha também estas árvores no que seria uma floresta densa e diversa, com árvores de menor porte (como a tramazeira, o escalheiro ou a macieira brava) e arbustos (como a gilbardeira) a complementar, por estratos de alturas diferentes, todo o volume do sistema. Para os Celtas, que habitavam na floresta, o loureiro juntava-se ao carvalho como símbolos de força e de nobreza.

“Fiquei parva agora de fazerem isso, porque antigamente... Isto já está muito modificado. Porque a gente - lá está - tem aqui muita coisa! E eu alguma vez ia pegar nalguma coisa para fazer com... Não! Porque eu não conheço.” - L

A bolota é realmente de valor nutricional mais equilibrado e completo do que os grãos anuais a que tanto nos habituaram. Para além de não termos que revirar a terra para semear a bolota, ela cai de majestosas árvores sem o menor esforço. A recoleção, ao contrário da agricultura, é uma prática que acompanha os humanos e os seus antecedentes há centenas de milhares de anos, em que se reconheciam e consumiam mais de duas mil espécies de plantas comestíveis. Os esforços civilizacionais foram restringindo tanto o acesso como o próprio conhecimento a esse grande legado. Hoje em dia, o contacto alimentar está reduzido a pouco mais de cinquenta variedades, que são maioritariamente anuais e incapazes de auto-propagação. Nas civilizações industriais, destroem-se florestas e libertam-se quantidades extremas de carbono da terra para o ar, ano após ano, para que seja possível comprar essas poucas e mais pobres espécies.

A enorme discrepância na qualidade nutricional de dois alimentos - um proveniente de uma floresta, outro, de um campo de cultivo em regime industrial - está presa ao facto de que as florestas são ecossistemas obrigatoriamente dominados por fungos.

“Cogumelos, isso eu sei, tem que ter um anel... Tem que se perceber, porque há outros, que até podem ser bons mas nunca apanhei.” - L

São os fungos que efetivamente constituem aquilo a que chamamos “a rede comum”. Através de conexões em rede infinitamente complexas, o micélio de várias espécies fúngicas estende-se solo adentro, por vezes cobrindo volumes centenas de vezes maiores do que o das próprias árvores. Esta rede serve às necessidades dessas grandes plantas, estabelecendo protocolos de comunicação e linguagens muito divergentes em simultâneo.

Os valores nutricionais imbatíveis da bolota, e de outros frutos provenientes de árvores florestais, é apenas possível pois estas árvores estão geneticamente programadas para trabalhar com essas redes fúngicas avançadas. Estas são capazes de extrair e solubilizar grandes quantidades de nutrientes que as árvores prontamente incorporam nos seus corpos, frutos e sementes. A capacidade que as florestas têm de mobilizar, incorporar e reciclar nutrientes altamente diversificados e balanceados é por vezes incompreensivelmente maior do que aquilo que é possível num campo de cultivo.

Aqui neste terreno, já não temos tanta variedade de espécies disponíveis como outrora houve em carvalhais desenvolvidos, mas podemos partilhar a que existe com os animais que por aqui passam.

“E depois aqui há plantas, que a minha mãe conhecia e eu não! Hum... Sete sangrias, que havia aqui no monte. Fazia-se um chá. Antigamente fazia-se assim uns chás, que agora não sei se ainda existe, essas sete sangrias...” - L

Podemos plantar as árvores dos estratos em falta e ainda semear mais bolotas para aumentar a quantidade de comida anual a que todos poderíamos ter acesso. Podemos pensar numa alimentação diversificada, com a bolota e outros frutos de árvores centenárias na base; uma cultura perene, capaz de inverter as mudanças climáticas e o

regime de escassez, uma vida pontuada por prazerosos passeios, com cestas, conversas e outros animais à mistura.

(sons de gansos, cabras e galos) “Vai lá para trás!” - M